segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Entrevista Celeste Rodrigues - "Confundiram-me sempre com a Amália. Era desagradável"



A irmã mais nova de Amália Rodrigues é a decana do fado. Cumpre 65 anos de carreira e actua amanhã no São Luiz, em Lisboa

Aos 9 anos já trabalhava a descascar ervilhas enquanto sonhava em ser bailarina. Só cantava com a irmã Amália, sempre como brincadeira. Celeste Rodrigues tornou-se fadista por acaso e é hoje a decana do fado e celebra amanhã 65 anos de carreira. Com 87 anos, a ex-mulher do actor Varela Silva chega para a entrevista com o neto Diogo Varela Silva, uma espécie de agente que trata de tudo. Com os lábios pintados de vermelho, um casaco que parece um xaile e uns grandes óculos de sol, Celeste continua a parecer-se com Amália Rodrigues e continua a cantar nas casas de fado porque não quer ser um "trapo velho em casa".


É a fadista mais antiga no activo. Como se sente ao ouvir isso?

Lindamente. Sinto-me mais jovem.

Já cantou com um braço partido, aconteceram-lhe mais peripécias?

Cantei com anginas, constipações, com as costelas partidas. A pior foi a do braço partido. Estava na Bélgica e tínhamos ido ao McDonald''s com um músico. Tropecei num degrau e parti o braço em quatro sítios diferentes. Fui para o hospital e o médico queria operar-me nesse momento. Disse-lhe que não podia ser, que tinha concerto nessa noite. Se visse a cara dele.

Deu o concerto?

Dei, sim. Com o braço ao peito, tapado pelo xaile. Só exigi cantar sentada.

Como é que se canta com dores?

O fado quer isso. Com dor até se canta melhor. O aiii até sai mais forte.

Isso é ser profissional?

Nem sei se sou profissional, gosto é de cantar. Sou pontual, mas noutras coisas sou uma amadora. É tudo de improviso. Às vezes ele [aponta para o neto que está sentado ao seu lado] diz para eu fazer umas coisas e não me apetece. Depois pergunta-me: "Afinal és uma artista ou quê?". Eu respondo: "Sei lá".

Continua a cantar em casas de fado?

Sim, no Café Luso e na Casa Linhares. Há dias em que não apetece, mas ouvimos as guitarras e esquece-se tudo. Uma pessoa faz uma coisa durante tanto tempo que parar é triste. E não quero ser trapo velho em casa.

Como vai ser o concerto de amanhã?

Já tive tantos concertos, mas este é mais bonito. Sinto-me contente, porque são amigos que me querem homenagear e o meu neto, que acha que a avó é o máximo. Quando era miúdo desfazia-me as malas para eu não ir em concertos.

Vai cantar com o Tim e o Zé Pedro dos Xutos & Pontapés.

Adoro trabalhar com eles. Divirto-me imenso. Também gosto de cantar com a gente jovem do fado. Aprendo a sentir-me mais jovem e eles aprendem qualquer coisa comigo. Mas não a cantar, que isso não se ensina.

Não?

Não, isso é para os clássicos. Aprender a cantar fado até estraga. O fado é povo. Desde que se seja autêntico e não se desafine, toda a gente canta bem. Se se aprendesse, caramba. Eu teria tido uma boa mestra, a minha irmã.

Há uma grande diferença na sua maneira de cantar e na de Amália?

Na sensibilidade não, na voz sim. Ela tinha um timbre maravilhoso. A Amália cantava um fado e estava tudo feito. Canto um ou dois fados dela porque consigo fugir ao estilo. Mas há uns que nem me atrevo, só ia estragar.

Quais?

"A Gaivota", "Foi Deus", o "Grito".

Sempre sonhou ser fadista?

Não. Nem eu nem a minha irmã. Gostávamos era de cantar. Andávamos sempre "lá, lá, lá". Comecei a trabalhar aos 9 anos a descascar ervilhas, depois numa fábrica de bolos em Santos e não pensava em ser artista. Sonhava ser bailarina. Gostava tanto que pus as minhas filhas [Rita e Mizé] no ballet.

Começou a cantar na mesma altura que a sua irmã?

Sim. Cantávamos folclore da beira, os fados dos ceguinhos e as cantigas da rua. Foi por acaso que o resto aconteceu. Ela entrou num concurso de fados porque namorava com o guitarrista e foi assim que tudo começou.

E a Celeste, quando começa a cantar?

Íamos almoçar ao Mesquita, onde havia fados e pediam sempre à Amália para cantar. Ela respondia que eu também cantava bem. Um dia tive coragem e cantei uma quadra à desgarrada. Estava lá o Zé Miguel, empresário da minha irmã e do Casablanca [cabaré] que me disse: "Tu vais cantar". Tratou-me do cartão de artista, fui aos ensaios, mas no dia da estreia não queria entrar.

Como é que a convenceram?

O apresentador empurrou-me para o palco. As pernas tremiam-me. No final fiquei toda contente, afinal conseguia.

Os seus pais viam com bons olhos a vossa carreira?

No início não. Dizia-se que numa das casas estava lá uma Maria do Carmo que era bêbada, a minha mãe não gostou.

Ela gostava de vos ouvir?

Os meus pais foram ouvir-nos duas vezes.

Porquê só duas?

Sei lá. Não dava. Se calhar, nunca quiseram ou não iam por timidez. Quem ia mais vezes era o meu irmão Filipe que era boxeur.

Quando começa a gravar sentiu que já era uma coisa profissional?

Fiz 59 discos. Sou uma mandriona para gravar. Estamos ali a cantar sozinhas... Mas gravei êxitos como o "Olha a Mala", a convite do Valentim de Carvalho. Foi um sucesso.

Gosta de ser reconhecida na rua?

Confundiam-me sempre com a Amália. Era um bocado desagradável porque queria era ficar sossegada e tinha gente a olhar para mim. Apostavam se era a Amália ou não. Até me escondi, quando ela fez as "Capas Negras".

Gostava de ter tido a fama da sua irmã?

Não. Nem ela. A Amália não ligava nenhuma a isso. A fama é uma coisa muito pesada. Arranjam-se famas horrorosas. Cantar não tem nada a ver com fama.

A sua irmã entrou em vários filmes. O cinema nunca a atraiu?

Tive vários convites, mas nunca quis. "O Pátio das Cantigas" foi feito para a Amália e para mim. Como ela não quis, eu também não. Depois de velha é que entrei no "Xavier" [de Manuel Mozos, 1992]. Pensei: "Agora quero lá saber".

Mas entrou numa revista no Brasil?

Sim, em 1945. Diziam que tinha muita habilidade, mas quando a companhia veio para Portugal, desisti. Lá estava à vontade, até mostrava as pernas. Aqui não.

Teve uma casa de fados, A Viela.

Durante quatro anos. Era uma escrava. Mas ser escrava? Só do amor. Não tinha jeito para o negócio. Dizia às pessoas: "Ai, não beba mais que faz mal". Mas tive uma casa sensacional, com o melhor ambiente em Lisboa. Fui a única a conseguir ter o [Alfredo] Marceneiro a cantar fixo durante anos.

Com o 25 de Abril tudo mudou?

Achavam que era fascismo... Foi mau, porque não havia trabalho. Tive de ir seis meses para os EUA, porque a casa onde cantava fechou e não tinha coragem de ir pedir trabalho. Não era agradável estar longe das minhas filhas, mas aguentei.

Cantar no estrangeiro é diferente?

Lá não tenho nervos. Não está lá nenhuma fadista melhor que eu. Uma vez, no Luxemburgo estava a cantar coisas alegres e não segurava o público. Até que encostei a cabeça à parede e mandei cantar um fado mais triste. Quando acabei estava uma senhora a chorar. Ela disse-me: "Não percebi nada, mas é lindo."

Tem manias enquanto canta?

Se não agarrar o xaile, a minha voz não sai da mesma maneira. Torço-o e a voz sai com mais força.

Em 2008 estreou "Amália". O que achou do filme?

É um horror. Nada daquilo é verdade. Põem-na como uma pateta. Dizem que é ficção, mas com os nossos nomes.

A sua vida seria diferente sem Amália?

Claro, éramos unha com carne. Não precisávamos de falar para nos entendermos. Seria diferente nesse aspecto, na parte artística não.

No fado não houve ninguém como ela?

Não houve nem nunca vai haver. Ela tinha humildade, gosto, sensibilidade e simpatia. Ela crescia no palco, além dos saltos altos. Lembro-me de uma vez ela cantar a "Gaivota" tão bem que lhe disse: "Cala-te que me estás a fazer doer com essa música."
Entrevista retirada do Jornal i, de 20 de Dezembro de 2010

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