quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Viúvo - Memórias do Fim do Império


Um dos mais aclamados romances do Jornalista/Escritor Fernando Dacosta - O Viúvo - Memórias do Fim do Império - é o livro escolhido pela revista Visão e Jornal Expresso para a colecção Jornalistas Escritores, Escritores Jornalistas... e por apenas € 3.90.
Não perca este extraordinário romance, do mesmo autor de As Máscaras de Salazar e Nascido no Estado Novo.
Crítica ao livro "O Viúvo - Memórias do Fim do Império"

"A escrita de Fernando Dacosta é expressiva duma certa tensão entre duas paixões essenciais: a função jornalística, exercida com a dignidade e a competência que se lhe reconhece e, acumulativamente, a criação literária - em cujo compromisso tem predominado a produção de textos para teatro. Posta nestes termos, esta constatação talvez possa parecer irrelevante, quano o objectivo é a abordagem crítica do romance O Viúvo, obra que mereceu o Prémio Literário Círculo de Leitores - 1986, atribuído por unanimidade. A circunstância de a obra vir já rotulada pelos sucessos dum tal evento (cuja meritória iniciativa não é demais realçar) não me inibe de problematizá-la à luz de outros parâmetros, como seja o de tentar stuá-la, primeiro, no âmbito da anterior obra literária do Autor, depois no centro dum fenómeno recente entre nós (o da ficção publicada por numerosos jornalistas portugueses) e, finalmente, no confronto com o romance que vem sendo o elemento polarizador duma nova geração de escritores.

Não é difícil provar que O Viúvo irrompe, como prova de maturidade e espaço de inovação, em qualquer dos domínios atrás assinalados. A começar, deixa a alguma distância a anterior ficção do A., de que conheço Um Jeep Em Segunda Mão e A Súplica (ambos de 1982) e Sequestraram o Senhor Presidente (1983).

Quanto às obras subscritas por outros jornalistas (ressalvadas que sejam as inevitáveis excepções), é também nítida a separação, assim como a irreversibilidade de O Viúvo relativamente à escrita jornalística (nem sempre despretensiosa) e à outra, a da criação literária - linguística e romanescamente entendida na sua especificidade e sobretudo na sua universalidade. A ruptura situa-se no ponto em que este romance, coexistindo embora com uma salutar estratégia de simplicidade, não cede ao elemento mais redutor da literatura, que é o despojar a linguagem, querê-la meramente epidérmica e, logo, amarelecida, contaminada pela “finalidade” jornalística. Resta, pois, falar de O Viúvo enquanto obra acabada de romance e inseri-lo no mundo diverso e capitoso da nova ficção portuguesa.

Toda a ideia e a própria esquematização estrutural da obra parecem assentar numa evidente dicotomia: a solidão mortal do “viúvo” (o inominado protagonista desta memória lusitana) e o povoamento progressivo dos mundos, dos tempos e dos perfis humanos que servem de suporte a uma certa autópsia moral de um país que enfrenta o seu futuro mas parece minado pelo eco, pela vicissitude convulsa dum passado de oito séculos. O trânsito dessa “memória” faz-se com base no recurso a um acróstico: cada capítulo encima com as letras da palavra LUSITÂNIA, no que parece ser uma organização vertical e paradigmática e, melhor ainda, uma interrogação acerca do devir histórico. Evidentes, também, os paralelismos: o velho octogenário simboliza os oito séculos “morais” (não históricos, mas também históricos] do país que já foi ponto de partida para o mundo desconhecido e agora se situa ao nível do estuário, sem identidade e novamente carecido dum encontro consigo próprio. Depois, os seus transparentes sinónimos éticos e simbólicos: o velho não é senão um despojo (na agonia, nas fezes, no marasmo da paralisia), posto o que a sua relação com o mundo exterior é predominantemente sensorial: o ouvido, a atenção do lobo, a auto-suficiência miserável e quase fantasmal do seu expediente de vida. O forte contraponto do ????????, como espaço fechado do não-acontecido, encontra ainda a possibilidade da fuga para o exterior: aí vívem os outros, num jogo de marionetas e em movimento circulatório, que é simultaneamente de ronda e de afastamento sem remédio. Á equação entre solidão e solidariedade repousa, assim, na sua absoluta contradição.
Prevalece a ideia (e O Viúvo é, substantivamente, um livro de ideias, exigindo, por isso, também uma leitura ideológica) do desconcerto do mundo, nesse progressivo desaguamento da intemporalidade portuguesa, no desenlace pós-imperial e pós-colonial, na própria inutilização dos mitos, no regresso marítimo do torna-viagem de todos nós, na volumétrica sensação de que um novo Alcácer-Quibir (não necessariamente apocalíptico) se reapoderou deste povo. O equilíbrio acentua-se na segurança da síntese, no manejo competente e não demagógico da idiossincrasia lusitana, na própria expressão da nossa típica saudade (dos bons tempos dos heróis, dos resistentes ao fascismo, da euforia revolucionária e do seu mar de sonhos, mesmo até dos símbolos práticos da nossa pequenez). É, como disse, centrado na interrogação dos sofismas portugueses, no refluir da nova identidade, que verdadeiramente assentam a moral e a lição do livro. Nenhuma possibilidade de o catalogar nas premissas do chamado romance histórico, porquanto da História ele capta apenas um universo ensimesmado, algo caótico e assistido até por algum pessimismo (a integraçao europeia será, por fatalidade, um horizonte baixo, uma ameaça cultural?). Não sendo histórico, decorre contudo duma marcada introspecção histórica - mas, sintomaticamente, o tempo físico cobre apenas um Inverno serrano, no berço de Viriato. O octogenário (o jacente, conformado e moribundo octogenário) quase pode ser entendido como o búzio em terra, labirinto e enigma do ser e do não ser português. E, posto assim, no sopé dum destino não cumprido e errado de nascença, é muito mais o depositário desse concerto de vozes na distância do que o mensageiro ideológico da circunstância histórica - nisso diferindo, e radicalmente, do Velho do Restelo de Os Lusíadas. Dentro destas considerações se compõe também esta antí-epopeia, sem idílios nem devaneios, valendo antes como a elegia discreta do nosso vinho e da tragédia que lhe assiste.

Há um novo realismo nesta matriz (típica dos anos 80) em que cada um de nós foi ou é pessoa implicada e pessoa problemática. Há o assomo dum lendário típicamente português e até ibérico (na linha, recorde-se, do inventário das nossas legendas comuns e da sua função etnofantástica). Há, ainda, a transparência da alegoria religiosa, nas mistificações da aparecida e na projecção dum maravilhoso caracterizadamente popular (politicamente utilizado pela ditadura e ainda hoje capitalizado por sectores ideológicos fixos).

Em suma, pela sua actualidade anti-sistêmica, pela inteligência simbólica e concreta dos seus tropos e motivos e pleo modo como O Viúvo parece comportar um mundo de sugestões cuja leitura terá de ser progressiva - não é excessivo afirmar que se trata duma obra exemoplar, a um tempo unívoca e numerosa. Na linha melódica e epistemológica que vem sendo ensaíada pelos escritores da geração a que eu julgo pertencer.

João de Melo

MELO, João de
“[Recensão crítica a “O Viúdo”, de Fernando Dacosta]” / João de Melo. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, nº 98, Jul. 1987, p. 122-123."

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